Codinome senzala - Parte 02
O caso veio à tona devido a um conflito familiar. Enquanto os irmãos de Maria Uilma a acusavam de ter denunciado os pais por vingança, a mulher se defendeu dizendo que agiu por não aguentar mais ver tanta violência. As acusações de ambos os lados são pesadas, mas em nenhum momento são de fato atestadas no processo.
A única comprovação é que 4 pessoas foram encontradas em condições deploráveis. E que havia uma quinta pessoa nas mesmas condições, que faleceu 8 meses antes do resgate. Um adendo, para que se afirme à sua existência além do âmbito familiar e das folhas de um processo outrora esquecido, esta, que nunca conheceu a justiça, se chamava:
– Joaquina Cardoso Neta.
Questionada pela Juíza Ana Cláudia, que acompanhou todo o processo, inclusive, o resgate das vítimas, sobre o motivo de denunciar tal situação somente depois de conviver tantos anos presenciando tamanha violência, Maria respondeu que esperava que outros fizessem isso. Levando em conta que um pastor da região e pessoas próximas à família haviam dito a ela que tomariam as devidas providências. Como eles não fizeram, ela fez.
“… que ainda nunca tinha vindo ao Poder Judiciário pelo fato de ter vergonha da situação, que sentia-se humilhada e afrontada por ter dentro da família aquelas mazelas; que como professora de sociologia e falando e vivendo das questões sociais não tinha a coragem de resolver o problema daquelas pessoas; que desde criança sofre com a dor daquelas pessoas” – Trecho do Processo.
Por outro lado, seus irmãos alegam que a ação não diz respeito à compaixão, mas a interesses financeiros. Em depoimento, segundo consta no processo, uma irmã de Maria chega a declarar que ela gastou tudo o que tinha com “jogos e prostituição”.
“… entrevistada a respeito dos fatos em apuração, informou que sua irmã Maria Uilma do Nascimento fez essas ‘acusações infundadas’ contra a sua própria mãe e meio irmão, por vingança. Segundo ela, Maria Uilma perdeu todo o seu patrimônio (apartamento, carro), no jogo e na prostituição, e ao se ver sem nada, sem um teto para se abrigar, quis ir morar com sua mãe em Itapuranga, todavia essa não aceitou, uma vez que nunca se entenderam e viviam discutindo” – Trecho do Processo.
A continuidade desse trecho implica em toda a confusão e incertezas que essa história se enreda: sua irmã afirma conivência da Juíza que analisa o caso com a irmã, por serem amigas. “… Eu quero ser chamada na Polícia Federal, no Juiz, na Promotoria, porque em Itapuranga ninguém foi ouvido. Inclusive, a Juíza, Ana Cláudia Veloso Magalhães, é amiga dela e só por isso concordou que ela fosse a Curadora do Domingos, da Iracema, da Edi Maria e da Eliane, numa afronta a minha mãe, que sempre os tratou com respeito e dignidade, tendo-os amparado desde adolescentes. Essa juíza, na véspera da audiência já falava num salão de beleza de Itapuranga que Maria Uilma seria a curadora” – Trecho do Processo.
Procurada pela reportagem a irmã afirmou seu posicionamento, mas não quis dizer mais nada além disso. A Juíza não se pronunciou sobre o caso.
No Brasil, os crimes de trabalho análogo ao escravo ficam ao encargo do Grupo Especial de Fiscalização Móvel, por parte do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), e da Polícia Federal (PF), que agem segundo as denúncias que recebem.
Neste caso em especial, a ação foi promovida pela Juíza Ana Cláudia com auxílio da PM. Ela mesma foi ao local para resgatar as vítimas. A PF foi avisada apenas um mês depois, no final de outubro de 2007, e alegou que não poderia constatar mais nada, uma vez que todas as provas já tinham sido alteradas.
“… um trabalho pericial em data posterior á época da constatação dos fatos seria improdutivo uma vez que os vestígios materiais que existiam já não estão mais preservados, isso se ainda existirem, pois quando da visita da MMª Juíza Ana Cláudia Veloso Magalhães ao local em seguida foram impostas várias ações para a reparação da ação encontrada, conforme consta dos documentos enviados” – Trecho do Processo.
Das implicações que rodearam a Juíza, há o fato do processo aberto contra ela na OAB de Goiás, à época, os advogados dos acusados alegaram violência, coerção e abuso de autoridade. Primeiro por impedi-los de copiar ou examinar os autos. Segundo, conforme consta no processo, por ameaçar Terezinha e Valdemar, e assim coagi-los a aceitarem os termos que ela havia determinado nos processos de interdição das vítimas, que tem como autor o Ministério Público. Este, na ocasião, não tinha representante algum na sala de audiência. Nem mesmo a curadora especial que havia sido instituída para representar às vítimas naquele momento estava presente.
Conforme o relato dos advogados, os termos foram aceitos por medo que as ameaças se concretizassem.
“A magistrada impôs a proposta e efetuou a ameaça, coagindo-os, impondo a condição que caso não fosse firmado o acordo por ela exigido, seriam utilizadas algemas ‘prateadas’, pois só sairiam dali presos… Para elevar o grau da ameaça e da coerção, a audiência foi realizada na presença de dois policiais os quais a magistrada chamava de ‘soldados’, pois estavam ali para obedecer as suas ordens” – Trecho do Processo.
O processo foi arquivado por falta de provas.
Antes de seu resgate, Edi nunca havia ido ao mercado ou ao açougue. Não reconhecia uma moeda de 0,50 centavos, embora soubesse “que serve para comprar”. Portanto, “não sabia o preço do arroz ou do feijão”. Também não sabia ler ou escrever. A Família Gouveia não lhe roubou apenas o trabalho, mas o conhecimento. Roubou-lhe anos de sua vida.
Sua única filha, segundo consta, pode ter nascido com problemas de saúde mental, devido as inúmeras tentativas de aborto por parte de Edi, pelo fato de Eliane ser filha do ex-marido de Teresinha, o falecido Celestino, que abusou dela diversas vezes.
Eliane, diferente da mãe, teve algum acesso aos comércios da cidade. Entende um pouco das letras e lê com dificuldade. Sabe o valor de algumas coisas. Mas desconhece uma nota de 50 reais. Cresceu sendo educada por Terezinha, e aprendeu desde cedo que tinha duas mães: “uma de criação e outra que lhe deu a luz”.
A relação entre as duas foi prejudicada pela violência sofrida por anos. As condições que eram impostas à Edi a impediam de ser mãe. Inclusive, de se entender capaz de exercer a maternidade. Ao ponto, mesmo depois de seu resgate, dela dizer à filha que a melhor opção seria ficar com a Terezinha, pois não se via em condições de cuidar dela.
O processo de interdição que deveria, desde o seu início, apaziguar e oferecer dignidade, foi de transtornos imensos para mãe e filha. Eliane, que inicialmente deveria transitar entre as casas de Edi e Terezinha, suas mães, biológica e de criação, respectivamente, sofria com constantes ataques verbais de Maria Uilma, quando esta visitava Edi, segundo consta em seu relatório psicológico. Além de afirmar que não seria feliz com Maria Uilma, Eliane também conta que a mesma chama a sua mãe Edi de suja e nojenta.
O processo de curatela de Edi é rodeado de possíveis violações nunca atestadas. No dia 31 de julho de 2009, uma carta escrita pela irmã de Maria Uilma, endereçada à promotora de justiça da Comarca de Itapuranga, a acusa de uma série de agressões. Dentre as muitas denúncias, Maria do Nascimento Vaz afirma que sua irmã impedia Eliane de ver a Edi e a Terezinha – a essa altura, Maria Uilma já havia conquistado a curatela de Eliane.
Vaz ainda alega que a “Srª Maria Uilma considera-se ‘dona’ das pessoas e dos bens pertencentes a eles sob a sua curatela”. Além disso, a carta traz uma suposta fala da Edi, onde a mesma afirma “que está sendo tratada pior que uma cachorra” por Uilma, “e que esta sendo agredida verbal e fisicamente” por ela.
Em 04 de novembro de 2009, um parecer psicológico é feito, nele o discurso de Edi é outro o que leva a Promotoria de Justiça a arquivar a denúncia, por que esta “não condiz com a situação real da curatelada”.
Em 2013, Edi fugiu para a casa de Terezinha. Maria Uilma relata o ocorrido à Comarca da cidade. Um novo estudo social é requerido. O processo se estendeu até 2015. Maria Uilma venceu, por ser constatado “bons cuidados”, segundo o estudo.
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Continua…
A terceira e última parte irá tratar dos processos de interdição do Domingos e da Iracema. Além do processo trabalhista e da realidade atual de cada um deles.